Meu avô sempre foi um mistério em minha vida. Com temperamento ora intempestivo, ora espirituoso, na personalidade dele nunca existiu um meio termo. Filho mais velho de treze irmãos, ajudou o pai na criação dos filhos de três casamentos. Bom com os números, largou cedo a lida na roça e foi trabalhar com o tio farmacêutico no comércio. Quis o destino que aos 28 anos, ele fosse nomeado auditor fiscal, profissão que exerceu durante quase 40 anos.
Lembro-me quando ele me levava para o posto fiscal. Eu odiava, fazia de um tudo para fugir, mais era da minha avó a decisão final. O lugar era um caos. Notas fiscais espalhadas nas mesas, carimbos enormes, talões gigantes entre carbonos, tudo escrito a mão. O divertimento ficava por conta das máquinas datilográficas onde eu insistia em escrever meu próprio nome seguidas vezes. Vovô não pedia, só mandava. Sua palmatória era o um simples olhar.
Ele tinha um Corcel II hobby grafite com lameiras e protetores de portas. Ele ficava horas encerando a pintura como se fosse um gigantesco troféu de rodas. Eu adorava passear com ele, achava aquele carro o máximo. O passeio só perdia graça quando ele insistia em fumar um boró grosso que fedia horrores. Graças a uma mancha no pulmão por causa da creolina que tomava como se fosse vermífugo, ele deixou o charuto de coronel. A camada de ozônio e nós agradecemos.
Ainda criança, eu tremia quando via meu avô. Sempre sisudo, bigodão de Fred Mercury, ele lembrava os coronéis do sertão, tangia os filhos e a mulher como gado, tal qual o pai, seu Uriel que viveu 95 anos. Quando meu pai morreu em dezembro de 1992, ele assumiu nossa criação. Escola, vestuário, lazer, absolutamente tudo. Foi graças a ele que nos formamos. A época, minha mãe não tinha recursos, meu pai só deixou dívidas, de modo que coube a ele a tutela dos netos.
Uma vez quando eu tinha uns 8 anos, entrei de surdina no banheiro e ele estava lá de tesoura e barbeador na mão de frente para o espelho, fazendo o retoque no bigode. Ele fingiu que não me viu entrar e eu fiquei horas no ri-ri da porta espiando ele aparar aquele bigode enorme que eu invejava não ter. De repente ele se dirigiu a mim com sorriso tímido e disse: Um dia você vai ter um desses... Eu corri de vergonha e ele soltou uma sonora gargalhada.
Vovô jogava baralho. Nas suas horas de folga, varava madrugadas a fio, bebendo conhaque de alcatrão, fumando cigarro de rolo e jogando buraco. Minha avó quase infartou quando ele perdeu a única casa que moravam no baralho. Viveram de aluguel um bom tempo até ele recuperar o imóvel nas mesmas circunstâncias. O vício foi interrompido graças a ela e um revólver 38. Um dia eles resolveram que ela faria uns exames de rotina. Nunca mais ela voltou para casa.
Desde então eu passei a conhecer meu avô de uma maneira humanizada. Homem que é homem não chora, ele me disse uma vez. Chora e chora muito, ele me ensinaria mais tarde. Foram 120 dias de sofrimento até ela não suportar mais e nos deixar. Dias difíceis aqueles. Aprendi o que significava o amor de um homem por uma mulher ali, na prática. Ele foi um grande compaheiro e a recíproca foi verdadeira. Dias deveras difíceis aqueles. Vencemos várias batalhas, mais perdemos a guerra.
Quando fui estudar veterinária no interior, meus tios haviam casado. Ficamos eu e ele em uma casa enorme e sombria. Em cada cômodo uma lembrança, uma história, quarenta anos de companheirismo tatuados no ar. Não tivemos uma convivência fácil é verdade. Ele era a ditadura e eu anarquia, ele Irã e eu Iraque, imprensa revolucionária e censura entre quatro paredes. Ele casou de novo e eu me formei. Senti falta do seu abraço na minha festa de formatura vovô!!
Quando eu me casei, ele foi meu padrinho, nós nos reaproximamos e hoje temos aquela relação de dois primos, um do interior e o outro da capital, que quando se vêem tudo vira festa e nostalgia. Talvez Deus escreva mesmo certo por linhas tortas. Talvez o tempo seja mesmo o melhor remédio para todos os males. Talvez pais e filhos devam andar mais de mãos dadas. Talvez o mundo fosse melhor se fóssemos menos orgulhosos. Que esse grito ecoe na sua mente o resto dos seus dias vovô: EU TE AMO.
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