09 julho 2009

Sobre meu AVÔ

Meu avô sempre foi um mistério em minha vida. Com temperamento ora intempestivo, ora espirituoso, na personalidade dele nunca existiu um meio termo. Filho mais velho de treze irmãos, ajudou o pai na criação dos filhos de três casamentos. Bom com os números, largou cedo a lida na roça e foi trabalhar com o tio farmacêutico no comércio. Quis o destino que aos 28 anos, ele fosse nomeado auditor fiscal, profissão que exerceu durante quase 40 anos.

Lembro-me quando ele me levava para o posto fiscal. Eu odiava, fazia de um tudo para fugir, mais era da minha avó a decisão final. O lugar era um caos. Notas fiscais espalhadas nas mesas, carimbos enormes, talões gigantes entre carbonos, tudo escrito a mão. O divertimento ficava por conta das máquinas datilográficas onde eu insistia em escrever meu próprio nome seguidas vezes. Vovô não pedia, só mandava. Sua palmatória era o um simples olhar.

Ele tinha um Corcel II hobby grafite com lameiras e protetores de portas. Ele ficava horas encerando a pintura como se fosse um gigantesco troféu de rodas. Eu adorava passear com ele, achava aquele carro o máximo. O passeio só perdia graça quando ele insistia em fumar um boró grosso que fedia horrores. Graças a uma mancha no pulmão por causa da creolina que tomava como se fosse vermífugo, ele deixou o charuto de coronel. A camada de ozônio e nós agradecemos.

Ainda criança, eu tremia quando via meu avô. Sempre sisudo, bigodão de Fred Mercury, ele lembrava os coronéis do sertão, tangia os filhos e a mulher como gado, tal qual o pai, seu Uriel que viveu 95 anos. Quando meu pai morreu em dezembro de 1992, ele assumiu nossa criação. Escola, vestuário, lazer, absolutamente tudo. Foi graças a ele que nos formamos. A época, minha mãe não tinha recursos, meu pai só deixou dívidas, de modo que coube a ele a tutela dos netos.

Uma vez quando eu tinha uns 8 anos, entrei de surdina no banheiro e ele estava lá de tesoura e barbeador na mão de frente para o espelho, fazendo o retoque no bigode. Ele fingiu que não me viu entrar e eu fiquei horas no ri-ri da porta espiando ele aparar aquele bigode enorme que eu invejava não ter. De repente ele se dirigiu a mim com sorriso tímido e disse: Um dia você vai ter um desses... Eu corri de vergonha e ele soltou uma sonora gargalhada.

Vovô jogava baralho. Nas suas horas de folga, varava madrugadas a fio, bebendo conhaque de alcatrão, fumando cigarro de rolo e jogando buraco. Minha avó quase infartou quando ele perdeu a única casa que moravam no baralho. Viveram de aluguel um bom tempo até ele recuperar o imóvel nas mesmas circunstâncias. O vício foi interrompido graças a ela e um revólver 38. Um dia eles resolveram que ela faria uns exames de rotina. Nunca mais ela voltou para casa.

Desde então eu passei a conhecer meu avô de uma maneira humanizada. Homem que é homem não chora, ele me disse uma vez. Chora e chora muito, ele me ensinaria mais tarde. Foram 120 dias de sofrimento até ela não suportar mais e nos deixar. Dias difíceis aqueles. Aprendi o que significava o amor de um homem por uma mulher ali, na prática. Ele foi um grande compaheiro e a recíproca foi verdadeira. Dias deveras difíceis aqueles. Vencemos várias batalhas, mais perdemos a guerra.

Quando fui estudar veterinária no interior, meus tios haviam casado. Ficamos eu e ele em uma casa enorme e sombria. Em cada cômodo uma lembrança, uma história, quarenta anos de companheirismo tatuados no ar. Não tivemos uma convivência fácil é verdade. Ele era a ditadura e eu anarquia, ele Irã e eu Iraque, imprensa revolucionária e censura entre quatro paredes. Ele casou de novo e eu me formei. Senti falta do seu abraço na minha festa de formatura vovô!!

Quando eu me casei, ele foi meu padrinho, nós nos reaproximamos e hoje temos aquela relação de dois primos, um do interior e o outro da capital, que quando se vêem tudo vira festa e nostalgia. Talvez Deus escreva mesmo certo por linhas tortas. Talvez o tempo seja mesmo o melhor remédio para todos os males. Talvez pais e filhos devam andar mais de mãos dadas. Talvez o mundo fosse melhor se fóssemos menos orgulhosos. Que esse grito ecoe na sua mente o resto dos seus dias vovô: EU TE AMO.

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