31 maio 2009

R E N A S C I D O

Às 5:30h da manhã o despertador tocou. Levantei de súbito, taquicárdico, transpirava como se tivesse corrido 10 km. Um pesadelo havia me deixado acordado a noite toda. Cenas de pessoas mortas, sangue, velas e muita tristeza. A boca seca me fez ir direto a geladeira. Minha mãe como de praxe, sempre que eu ia viajar acordava mais cedo, fazia um café cheiroso e esquentava o leite. Sentávamos juntos na mesa e ela fazia as mesmas recomendações de sempre: estudar bastante, nada de farras homéricas ou notas baixas nas disciplinas básicas. Minha mãe sempre foi muito inocente.

Lawrence e eu éramos amigos de longa data. Estudamos juntos no colegial e fizemos cursinho pré-vestibular com o mesmo objetivo: estudar medicina. Após várias tentativas frustradas, resolvemos mudar nossa sorte. Ele passou em Direito e eu em Medicina Veterinária. Ele brincava dizendo que eu seria Doutor, a única diferença era que os meus pacientes tinham patas. Eu revidava dizendo que ele seria ladrão com diploma. Como de costume, viajávamos 540 km juntos todo o final de semana do interior a capital e vice-versa.

Nessa que seria nossa última viajem juntos, Lawrence estava feliz, tinha reatado o namoro e fazia planos. Por volta das 6h, a buzina tocou, era ele. Com um abraço atípico, me despedi da minha mãe. Por milésimos de segundo o pesadelo da noite mal dormida veio a minha memória, contei a minha mãe durante o café e ela fez cara de preocupação. Nos despedimos e me dirigi ao portão com um estranho nó na garganta. Olhei para trás, minha irmã mais velha estava na porta e fez sinal de despedida. Até então, isso nunca tinha acontecido. Não consegui segurar a lagrima.

No carro, João Ciro, um velho conhecido de Lawrence e meu colega de curso, fazia piada com o volume da minha bagagem. Sempre fui de levar pouca bagagem, fosse uma viagem de 15 dias ou um mero fim de semana na casa dos pais. Decidimos no par ou ímpar quem iria no banco de trás. A idéia era dormir a maioria do percurso e para isso, o banco traseiro era perfeito. Eu perdi e Ciro acomodou-se no banco fazendo piada com a vantagem ganha na aposta. Do lado do carona, deitei o máximo que pude o banco e tentei ensaiar um cochilo.

Na condição de motorista, Lawrence ria de nossa "briga" pelo banco. Ele adorava dirigir, principalmente se fosse seu Escort 1995, presente do pai por ocasião de sua aprovação no vestibular. Já na estrada, o som do pagode Soweto, banda que na época, fazia o maior sucesso nas rádios populachas, animava a viajem que duraria apenas quinze minutos. Boas risadas nos proporcionaram os "causos" de João Ciro. Eu tentava competir mais os 30 dias de estadia na casa de meu avô só lembravam um colégio interno. Lá só havia deveres e o direito era o de ficar calado.

Na altura da reta Tabajara, no trecho conhecido como Macamirim (Macaíba-Parnamirim), um ônibus e um Chevette trafegavam em sentido contrário ao nosso. O veículo grande tentava ultrapassar o pequeno a sua frente, em um zigue-zague incomum na pista. Cerca de 500m de distância de nós, o motorista irresponsavelmente forçou a ultrapassagem. Percebendo que não daria tempo, ele desistiu, abalroando o pára-choques traseiro do Chevette que perdeu o controle e veio em nossa direção sem chance de reação para Lawrence.

Dias depois, a perícia constatou que a colisão se deu pelo efeito bola de sinuca provocado pelo "toque" entre o ônibus e o Chevette, esse último a 80km/h e nós a 120km/h. Foi como se batêssemos em muro de concreto a 200km/h. Um clarão acompanhado de uma síncope, me desligou do momento da colisão, só voltando a acordar minutos depois com o barulho de curiosos e o tráfego lento na pista. Lembro-me da inesquecível frase de um bombeiro "Encontrei um vivo!!!". Minha cabeça doía, a sensação era a de que eu havia caído de uma altura de dez andares.

Ciro sentia fortes dores no abdômen e suplicava ajuda no banco de trás. Só depois de alguns exames, ele ficaria sabendo que parte de seu intestino, tinha sido esmagado pela pressão do cinto de segurança. Eu fui transportado em carro aberto até o hospital de urgência, Ciro e Lawrence vieram de ambulância. Já no pronto-socorro, uma equipe de duas enfermeiras e um ortopedista, me encaminharam para traumatologia. Entre escoriações, pequenos cortes e a dor generalizada, o que mais preocupava os médicos era a possibilidade de hemorragia interna. Hipótese felizmente descartada horas depois.

Durante horas eu não lembrei se quer do meu nome. Minha mãe chegou ao hospital e eu não a reconheci. Lembro da cara de felicidade que ela fez ao me encontrar vivo, pois a assistente social havia trocado meu nome com o de Lawrence, informando-a erradamente do meu óbito. Só então recuperei a memória e soube que Lawrence havia falecido ainda a caminho do hospital, vítima de múltiplos traumatismos. O cinto de segurança rompeu e seu corpo foi arremessado pára-brisa a fora. Ironicamente meu cinto, na mesma ocasião, me segurou com tanta força que produziu no peito, uma mancha diagonal de sangue que durou um mês.

No outro veículo, mãe, pai e filho morreram vítimas do impacto. O combustível derramado no chão da pista por pouco não queimou e carbonizou a mim e Ciro, únicos sobreviventes. O motorista fugiu do local, nunca foi punido e até hoje circula ileso pelas ruas. Passados exatos dez anos desse acidente, só tenho a lamentar pelas vítimas, entre elas uma criança e agradecer a Deus por ter sobrevivido. Como disse uma tia dias após a tragédia, Deus há de ter algum plano para mim aqui na terra. Acho que de certa forma ela tem razão. Seja ele qual for, espero fazer jus para merecê-lo. Que assim seja.

Um comentário:

Bony Daijiro Inoue disse...

Fico feliz por você. Fico mesmo.