09 novembro 2011

Escurinho
Por Marcos Bezerra

- Que foi menino? Achou dinheiro ou comeu bosta?
A pergunta era um dos bordões do sapateiro Escurinho, lá no Caicó arcaico; como se as duas coisas fossem igualmente bem vindas e merecedoras de um sorriso franco. E nós, moleques, só para ouvir a explosão de nosso mestre Lunga, em sua pequena loja de consertos na Praça da Liberdade, ficávamos cutucando um ao outro e rindo sem motivo algum. 
Escurinho ia inchando no seu banquinho baixo de couro, tirava a atenção do calçado em reparo entre as pernas, olhava sério para os garotos entrando na adolescência, passava a faca afiadíssima nos cabelos encarapinhados e tascava o questionamento clássico. Aí é que a risadagem vinha com gosto.
Num tempo em que o politicamente correto era algo incerto e não sabido, a gente ainda aumentava a conta, dizendo que a faca soltava faíscas no cabelo de pixaim. O próprio apelido – não lembro de ter escutado algum dia alguém chamando Escurinho pelo nome –, hoje seria condenável, mas àquela época era comum entre os negros. Coisa da infância e que o nosso interlocutor, além de não se incomodar, demonstrava muito gosto por ele. Nas nossas maledicências de menino, dizíamos que o sapateiro era racista, por ter se casado com uma mulher branca.
Escurinho morreu em consequência de um câncer na garganta. Não lembro o ano, mas do nosso último encontro, quando ia chegando a Caicó para fazer uma matéria. Avistei o homem que, enquanto trabalhava, recebia a meninada praticamente todos os dias para conversar miolo de quartinha; pedi para o motorista parar e fui lá apertar a mão dele. Já não era o negro forte e entroncado que pedalava uma bicicleta impecavelmente polida e cheia de enfeites. “Escurinho, com tantos enfeites essa bicicleta não fica muito pesada?”. E ele: “Eu não vou carregar na cabeça!
Marrrco [puxando o “r”] está muito importante. Virou jornalista, aparece na TV”, contou-me depois Giovanni, um dos agraciados com o mau humor engraçado do sapateiro.
Lembrei dele esta semana, não pelo câncer ter virado pauta obrigatória, com a descoberta de um tumor na laringe do ex-presidente Lula, mas pela frase que abre estas mal elaboradas linhas. Meu chefe, em dia de humor escasso, me encara numa reunião de trabalho. E eu, com vontade de rir, lembro o passado. “Que foi?”. Ele não conhecia, pelo menos não até hoje, o resto da frase. Completei no pensamento e fiquei me segurando para não rir. Ninguém na reunião deve ter entendido.
Se algum mal humorado atravessar o seu caminho, pergunte-lhe o motivo de tanta casmurrice com a vida. Ela é curta e só se vive uma vez. Mau humor, só se for para divertir, como bem fazia o mestre sapateiro Escurinho.

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