Por Marcos Bezerra
- Que foi menino? Achou dinheiro ou comeu bosta?
A
pergunta era um dos bordões do sapateiro Escurinho, lá no Caicó
arcaico; como se as duas coisas fossem igualmente bem vindas e
merecedoras de um sorriso franco. E nós, moleques, só para ouvir a
explosão de nosso mestre Lunga, em sua pequena loja de consertos na
Praça da Liberdade, ficávamos cutucando um ao outro e rindo sem motivo
algum.
Escurinho
ia inchando no seu banquinho baixo de couro, tirava a atenção do
calçado em reparo entre as pernas, olhava sério para os garotos entrando
na adolescência, passava a faca afiadíssima nos cabelos encarapinhados e
tascava o questionamento clássico. Aí é que a risadagem vinha com
gosto.
Num
tempo em que o politicamente correto era algo incerto e não sabido, a
gente ainda aumentava a conta, dizendo que a faca soltava faíscas no
cabelo de pixaim. O próprio apelido – não lembro de ter escutado algum
dia alguém chamando Escurinho pelo nome –, hoje seria condenável, mas
àquela época era comum entre os negros. Coisa da infância e que o nosso
interlocutor, além de não se incomodar, demonstrava muito gosto por ele.
Nas nossas maledicências de menino, dizíamos que o sapateiro era
racista, por ter se casado com uma mulher branca.
Escurinho
morreu em consequência de um câncer na garganta. Não lembro o ano, mas
do nosso último encontro, quando ia chegando a Caicó para fazer uma
matéria. Avistei o homem que, enquanto trabalhava, recebia a meninada
praticamente todos os dias para conversar miolo de quartinha; pedi para o
motorista parar e fui lá apertar a mão dele. Já não era o negro forte e
entroncado que pedalava uma bicicleta impecavelmente polida e cheia de
enfeites. “Escurinho, com tantos enfeites essa bicicleta não fica muito pesada?”. E ele: “Eu não vou carregar na cabeça!”
“Marrrco [puxando o “r”] está muito importante. Virou jornalista, aparece na TV”, contou-me depois Giovanni, um dos agraciados com o mau humor engraçado do sapateiro.
Lembrei
dele esta semana, não pelo câncer ter virado pauta obrigatória, com a
descoberta de um tumor na laringe do ex-presidente Lula, mas pela frase
que abre estas mal elaboradas linhas. Meu chefe, em dia de humor
escasso, me encara numa reunião de trabalho. E eu, com vontade de rir,
lembro o passado. “Que foi?”. Ele não conhecia, pelo menos não
até hoje, o resto da frase. Completei no pensamento e fiquei me
segurando para não rir. Ninguém na reunião deve ter entendido.
Se
algum mal humorado atravessar o seu caminho, pergunte-lhe o motivo de
tanta casmurrice com a vida. Ela é curta e só se vive uma vez. Mau
humor, só se for para divertir, como bem fazia o mestre sapateiro
Escurinho.
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